Seu Bonifácio parece ter perdido a prática no trabalho tão bem desenvolvido há 40 anos. Sua idade foi chegando junto com os calos das muitas e muitas colheres de pedreiro que usou para erguer as centenas de casas que entregou. Cada projeto era transformado em realidade, com fidelidade na construção de cada detalhe que traziam as linhas desenhadas por uma equipe de arquitetos e engenheiros.

Mas o tempo é injusto, e quando ele chega para alguém, chega trazendo sequelas irreparáveis que atrapalham qualquer profissional, por mais experiente que ele seja. Seu Bonifácio, esse já pensa seriamente em deixar de fazer o que mais ama nessa vida: entregar as chaves da propriedade nova e ver brilharem os olhos daqueles que as recebem. Ele lembra de cada gesto, cada abraço, cada champanhe quebrada e cada um dos fogos estourados. Mas Seu Bonifácio levou uma rasteira da vida, ao errar gravemente o último projeto lhe dado em responsabilidade.

Ele recebeu a já difícil missão de transformar um Hospital Municipal em uma unidade de primeiro mundo. Nele, os pacientes iriam adentrar, passando por uma portaria futurista, de portões desenvolvidos pelos melhores metalúrgicos da região. Ao percorrer os cerca de 50 metros do pátio de chão em pedra polida, extraída de uma das serras dessa cidade, o paciente daria de cara com uma recepção planejada para dar conforto aos sofridos e incomodados pacientes que aguardariam em cadeiras confortáveis a chegada de seu médico, que sorridente tiraria sua dor como num passe de mágica. As paredes brancas do corredor, não passariam despercebidas por aqueles que percorressem até as enfermarias de camas novas, lençóis brancos e armários brilhantes. 

Ao Seu Bonifácio foi dito: "Esse projeto foi desenvolvido por um dos melhores projetistas do país! A ele pagamos R$ 75 mil para que desenvolvesse uma proposta invejável e de encher os olhos dos moradores dessa cidade! Espalhamos outdoors nas ruas, quadros nas repartições e banners no local. Enxergamos o brilho nos olhos dos futuros donos daquela unidade, o povo! Vimos neles a vontade de estourar fogos e champanhe e comemorar com um abraço forte a entrega desse empreendimento! Portanto, Seu Bonifácio, o senhor tem nas mãos, uma preciosidade, capricha!"

Mas todas aquelas recomendações parecem ter deixado Seu Bonifácio tão preocupado, que não conseguiu transformar aquele projeto em realidade, e no dia da entrega da tão propagada obra, ele não conseguiu ver nos olhos do povo o brilho que costumava ver. Os fogos não foram ao céu neste dia e o champanhe não saiu do refrigerador. Mas quem teria coragem de cobrar algo desse tão entristecido homem? Ainda há quem duvide que um homem tão experiente tenha reformado o Hospital de forma totalmente diferente do que foi prometido. Há até aqueles que, em defesa de Seu Bonifácio, arrisca dizer que a culpa não era dele. "Devem ter lhe dado o projeto, mas  esqueceram de entregar o material necessário. Ele só pode ter recebido apenas dois baldes de tinta e a difícil missão de, com apenas pincéis e brochas, enganar os trouxas. Triste fim de profissão para Seu Bonifácio, ele não suportava a ideia de ter enganado o povo, mas deu de cara com pessoas que fazem isso sem o menor remorso".

Uma estória de Igor Fagner - Rota 324