Em tempos de vacas magras no mercado de trabalho, profissionais omitem qualidades em seleções em troca de emprego.
Após conseguir emprego como analista de processos operacionais em uma firma de tecnologia da informação, Bárbara Lourenço passou por uma situação inusitada.
Ao conhecer seus superiores diretos, que não tinham participado da seleção, falou sobre suas qualificações - e muitos ficaram surpresos.
"Minha gerente brincou dizendo que eu tinha mais cursos extras do que ela, a coordenadora e a supervisora juntas", lembra a matemática de 28 anos.
Naquela seleção, Bárbara havia usado um recurso cada vez mais recorrente, em tempos de vacas magras no mercado de trabalho, entre profissionais mais qualificados: omitir qualificações do currículo para não parecer capacitada demais para um cargo.
Por sorte, a nova chefia não se incomodou com a surpresa. "Até me pediram dicas de livros e treinamentos", conta.
A opção pela tática teve suas razões. Demitida em junho de 2016, Bárbara soube, logo na primeira entrevista de emprego após a demissão, que "tinha qualificações demais para a vaga em um momento de crise".
Ou seja, a empresa não poderia pagar por seu currículo, que incluía pós em Matemática e extensão em gestão de projetos.
Em outra tentativa, o próprio gerente disse que não faria sentido contratá-la, pois até ele era menos qualificado do que ela.
"Fiquei muito brava. Passei a ter medo de me apresentar com todos os conhecimentos que paguei muito pra ter. Jamais imaginei que precisaria, mas comecei a listar apenas experiências mais básicas. Funcionou", conta.
Números e riscos
O cenário econômico ajuda a entender essa tendência de "rebaixamento voluntário" do currículo.
A demissão de empregados com curso superior completo no Brasil cresceu 10,8% de março de 2015 a março de 2016 - um corte de 1 milhão de pessoas.
Os dados, apurados pelo economista Fabio Bentes, da Confederação Nacional do Comércio (CNC), para a Agência Estado, mostram ainda que esse aspecto do desemprego vai na contramão das faixas de menor instrução, que têm registrado recuos no total de demissões.
Assumir um cargo com currículo muito acima do necessário implica certos riscos, apontam especialistas em mercado de trabalho.
O primeiro é a dúvida - muitas vezes legítima - da empresa sobre o porquê da candidatura, e a suspeita de que o profissional deixará o emprego tão logo consiga algo melhor.
O segundo é o receio de que o funcionário se desmotive rapidamente ou fique ansioso por uma promoção que a empresa não pode oferecer.
No caso de Bárbara, ela diz que isso não ocorreu - e já está investindo numa nova graduação, em tecnologia em eventos.
"Sinto-me valorizada mesmo recebendo muito menos do que poderia ter (ganhava R$ 3,5 mil e passou a receber R$ 1,2 mil). Mais vale uma oportunidade na mão e a chance de me esforçar para alcançar tudo de novo do que um currículo ótimo que não rende oportunidades na crise."
Impactos da crise
Em muitos setores da economia brasileira, a dificuldade em conseguir emprego é efeito da recessão, a mais longa e intensa em 20 anos no país.
No trimestre encerrado em março de 2017, o desemprego medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ficou em 13,2% - 13,5 milhões de pessoas.
Para Bruno Ottoni, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em mercado de trabalho, a atual crise tem sido especialmente cruel com os trabalhadores.
"Nas crises anteriores verificávamos menos aumento no desemprego e mais queda na renda média do trabalhador. Havia mais inflação e mais informalidade, o que permitia aos patrões negociar mais facilmente reduções nos salários. Hoje, com a economia mais formalizada, o espaço para esse tipo de acordo diminui", explica.
Em previsão para 2017, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que, de cada três novos desempregados no mundo, um será brasileiro.
'Espantando oportunidades'
Das 40 pessoas que trabalhavam em 2014 no departamento da arquiteta Patrícia Rocha, de 30 anos, sobraram três. Ela própria perdeu o emprego em agosto passado e está sem emprego fixo desde então.
Depois de oito anos de estudos superiores no Mackenzie, ela acabou topando um contrato temporário de seis meses em uma construtora menor, com salário 25% mais baixo.
Com pós-graduação em gerenciamento de projetos pelo Mackenzie e cursando outra em design de interiores, Patrícia continua à procura de emprego fixo - e sem colocar no currículo o período em que atuou como coordenadora.
"Tenho a impressão de que isso tem espantado oportunidades para cargos mais baixos ou que nunca exerci. Aí nem sequer sou chamada para uma primeira conversa", lamenta.
Seleção não é só currículo
Consultores lembram que o sucesso nas entrevistas de trabalho não depende apenas do currículo - seja ele "rebaixado" ou não.
"Muitas vezes candidatos ficam só martelando a própria qualificação, sem parar para pensar no perfil que a vaga requer", diz Ricardo Basaglia, diretor-executivo no Brasil da empresa de recrutamento Michael Page.
Para Basaglia, os três fatores mais importantes que as firmas procuram são comprometimento, flexibilidade e facilidade de relacionamento.
Naturalmente, ninguém irá negar essas qualidades, mas entrevistadores tentam inferir esses pontos de forma indireta, em outras perguntas ou testes psicológicos.
E às vezes, lembra o consultor, o currículo precisa ser resumido não para esconder experiência, mas porque o documento está inchado.
"É comum que profissionais listem até cursos antigos de segurança do trabalho desimportantes para a vaga. É preciso que só fique o principal."
Basaglia não vê a omissão de dados do currículo como falta de ética, mas lamenta a "falta de confiança na relação entre empregados e empregadores".
Esteja o obstáculo na crise econômica, em um descasamento entre realidade e qualificação ou em ambos, vale a pena refletir sobre outras barreiras que eventualmente possam estar impedindo a conquista do emprego, afirma.
"O profissional que se conhece e se questiona com autoconsciência sempre acaba por se potencializar", conclui.
A essa dose de autocrítica deve se juntar, no entanto, uma torcida para que o pior da crise econômica tenha, de fato, ficado para trás.
Por BBC
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