Árbitro Anderson Daronco, ao fazer apenas sua obrigação, já fez muito, e isso mostra o tamanho do nosso atraso

Aos 19 minutos do segundo tempo da vitória de 2 a 0 do Vasco sobre o São Paulo, quando paralisou o jogo em São Januário por escutar cantos homofóbicos de parte da torcida vascaína, o árbitro Anderson Daronco não fez nada mais do que sua obrigação. E, ao mesmo tempo, fez muito.

É um triste paralelismo: quando fazer a obrigação significa fazer muito, temos ideia do tamanho do atraso. O ineditismo no gesto de Daronco em campos brasileiros não é apenas um ato de coragem: é um sintoma de que demoramos muito para fazer o básico.

Há um contexto político-esportivo por trás disso. No fim de julho, a Fifa informou as federações nacionais de que elas deveriam seguir um protocolo para casos de manifestações discriminatórias. A orientação é que os árbitros paralisem os jogos e, caso o problema não seja resolvido, até suspendam a partida. Na semana passada, o STJD determinou que episódios de homofobia e transfobia sejam relatados em súmula. A medida ecoa determinação do STF, que em junho votou pela criminalização da homofobia e da transfobia.

Mesmo assim, Daronco poderia ter seguido o jogo como se nada tivesse acontecido. É difícil imaginar que seria repreendido se não desse ouvidos aos cânticos preconceituosos. Por isso, merece elogios pelo gesto, assim como merecem elogios o técnico do Vasco, Vanderlei Luxemburgo, e os jogadores cruz-maltinos pela prontidão com que pediram aos torcedores para que parassem com aquelas manifestações.

O leitor provavelmente vai argumentar, e com razão, que a reação dos profissionais vascaínos não foi necessariamente uma demonstração de consciência social, e sim vontade de que o jogo recomeçasse logo e temor de uma eventual punição ao clube (cabe aqui uma ressalva óbvia, mas necessária: o que aconteceu em São Januário acontece em tudo que é estádio Brasil afora).

Mesmo assim, há uma boa notícia aí: o respeito a uma lei mostra que ela começa a se consolidar. É um passo importante. E é também um recado: se os gritos homofóbicos não pararem, o jogo pode parar. Pode e deve.

Toda essa situação reforça como o futebol é um ambiente hostil para gays. No começo de 2014, enquanto o Brasil ultimava sua preparação para sediar a Copa do Mundo, escrevi aqui no GloboEsporte.com uma reportagem sobre homofobia no futebol. E conversei com dois ex-jogadores, com passagens por grandes clubes brasileiros, que eu sabia (e muitos de nós que trabalhamos com futebol sabem) serem homossexuais. Perguntei a ambos se eles gostariam de participar da reportagem: se gostariam de usar a reportagem para afirmar publicamente que são homossexuais.

Naquela época, jamais havia acontecido de um jogador relevante, mesmo aposentado, ter se declarado gay no Brasil. Passados cinco anos, nada mudou. Aqueles dois ex-jogadores me disseram que achavam importante a discussão, que gostariam de poder participar da reportagem, mas que simplesmente não podiam. Argumentaram questões pessoais ou profissionais – um deles seguia trabalhando com futebol. E preferiram o silêncio.

É um direito absoluto deles. Ninguém tem obrigação de ser porta-voz de nada, de defender causa alguma, de carregar bandeiras, especialmente quando isso envolve algum nível de sacrifício pessoal. De qualquer forma, é ilustrativo que estejamos em 2019 sem que algum grande jogador do futebol brasileiro, em atividade ou aposentado, se sinta confortável para sair do armário.

E aí voltamos ao jogo deste domingo, voltamos às orientações da Fifa, às recomendações do STJD, ao árbitro que paralisou um jogo, ao técnico e aos jogadores que prontamente pediram para os torcedores pararem com as manifestações preconceituosas: não estaria aí um passo fundamental para que um dia, talvez em breve, algum grande jogador brasileiro se sinta finalmente confortável para dizer que é homossexual com a mesma naturalidade com que tantos e tantos colegas dizem que são heterossexuais?

Nada disso tornará o futebol chato. Não é cantar músicas homofóbicas, gritar “bicha” em um tiro de meta ou chamar o adversário de “veado” que dá graça ao futebol. Quem pensa isso não entende o básico: não entende o próprio futebol, esse jogo que nos assombra e nos comove, que é força e leveza, que simula a guerra e simula a dança ao mesmo tempo, que é uma das maiores personificações de beleza que o ser humano já criou – e que pertence a todos, a absolutamente todos.

Fonte: Globo Esporte