Leia o depoimento da mãe palmeirense que narra os jogos do time para o filho cego e autista; Silvia ganhou o prêmio de torcedora do ano entregue pela Fifa

O Nickollas nasceu no dia 31 de outubro de 2006 e desde então luta muito para viver. Ele nasceu muito prematuro, com apenas cinco meses, devido a uma tentativa de aborto de sua mãe biológica. Ele veio ao mundo com meio quilo de peso e ficou quatro meses na UTI. Durante a internação, passou por problemas de oxigenação e teve até uma parada cardíaca. Os médicos já estavam assinando o óbito, mas ele voltou. Sempre falo que o Nickollas não veio à toa, ele está nesse mundo para uma missão. Antes de adotá-lo, um dos profissionais que o atendeu me contou tudo o que ele havia passado e o questionei sobre a probabilidade de ele não resistir. Eu não estava preparada para perder um filho. Mas o médico disse que não poderia dar nenhuma garantia, porque qualquer recém-nascido e prematuro precisa de muito cuidado.

Me inscrevi na Vara da Infância e da Juventude pois queria mais um filho. Todos receberam muito bem a ideia, passei por todas as entrevistas com psicólogo, assistente social, que é um trabalho feito para conferir se a pessoa está preparada para adotar, porque algumas pessoas acham que adotar é caridade e escolhem: ‘quero uma menininha recém-nascida, de olhinho azul’, mas não é assim. Tenho os dois lados, o que nasceu do ventre e o que nasceu do coração, e não tem diferença nenhuma. Adotar é um ato de amor porque é para sempre, não é algo pontual. Há muito mais casais para adotar do que crianças para serem adotadas.

Entrei no processo de adoção e a juíza me avisou em uma sexta-feira que tinha uma criança disponível, mas que ainda estava no hospital. Saí do Fórum em êxtase e fui direto ao hospital conversar com o médico. Quando cheguei, ele trouxe o Nickollas para eu pegar no colo e contar a história dele. Minha vontade era já levar ele naquele dia, porque esperar até segunda-feira foi como uma gravidez de nove meses, parecia que não ia chegar. No sábado, toda minha família estava no berçário visitando ele. Na segunda-feira, minha casa já estava toda cheia de bexigas e berço todo arrumado, foi uma alegria imensa para a família toda.

Acho que nasci para a maternidade. A minha casa sempre foi e ainda é movimentada: vive cheia dos sobrinhos, dos amigos dos filhos que passavam o final de semana todo aqui. Sempre gostei disso e do trabalho social também, que herdei da minha mãe. Ela tem 97 anos e participou de atividades voluntárias e assistência social durante toda a sua vida. Já trabalhei com abrigo de crianças abandonadas e vítimas de violência. Participei de toda a elaboração do Estatuto da Criança e Adolescente, assim como da Lei Brasileira da Inclusão. Esse lado social é algo que está dentro de mim, vem de berço.

Minha rotina é bem corrida. Moro sozinha com o Nickollas, tenho que cuidar da casa, do trabalho na Prefeitura de Mauá, como secretária de Promoção Social – sou formada em ciências sociais – e principalmente dele. Ele está no quinto ano do Ensino Fundamental numa escola especial, o Instituto de Cegos Padre Chico. Ele vai para lá de manhã com uns amiguinhos e eu vou para o trabalho bem cedo para poder dar conta de tudo. Ele tem atividades quase que diariamente à tarde. Faz dois dias de terapia, teclado e natação. No sábado, ele vai para o curso de teatro na Oficina dos Menestreis, em São Paulo. Quando chega o domingo, às vezes eu estou cansada, não quero fazer nada, mas tem jogo do Palmeiras e vamos ao estádio porque é algo que ele gosta muito de fazer, então não meço sacrifícios e vou.

Ele sempre gostou muito de futebol, assim como eu e o pai dele, que é daqueles corintianos que assiste a jogos todo domingo. Era rotineiro assistir aos jogos com o Nickollas, mas por causa da rivalidade em casa, concordamos em não influenciar na escolha dele. Tudo mudou em um jogo do Santos, em que o narrador gritou o nome do Neymar em um gol. O Nickollas mal falava na época, mas começou a andar pela casa repetindo a narração. Ele passou a dizer que torcia pelo Neymar. Um dia, quando estava separada, fomos à Vila Belmiro e conhecemos ele. Eu tinha visto algumas entrevistas em que ele disse que torcia pelo Palmeiras, então aproveitei a ocasião e pedi para ele contar ao Nickollas. Logo em seguida, teve um jogo entre Palmeiras e São Caetano no Pacaembu, em 2012, e eu resolvi levá-lo. Ele saiu do estádio gritando ‘porco, porco, porco’ e virou palmeirense. Desde então, ir ao estádio virou uma rotina.

“Narrei jogos para o meu filho por sete anos e nunca ninguém falou nada sobre isso no estádio. Foi a partir daí que comecei a questionar o quanto o deficiente é invisível aos olhos das pessoas e percebi a importância de tentar falar sobre isso”

O Nickollas se transforma no estádio. Fica muito empolgado. Precisamos entrar correndo para não perder nenhum detalhe: o hino do Palmeiras, a escalação dos jogadores. É uma comemoração muito intensa na hora do gol. Pra ele, o estádio é o melhor lugar do mundo, é onde ele se sente mais à vontade. Fazemos isso há sete anos e, no início, colocava um fone em seus ouvidos para ouvir a narração do jogo. Mas ele insistia em tirá-los e preferia pular ao som da torcida. Sempre tentava descrever o que estava acontecendo antes do jogo, então passei a dizer, sutilmente, o que estava acontecendo no campo durante o jogo. Quando não falava, era ele quem me pedia. Eu ainda nem sabia muito sobre as regras ou os jargões do futebol. Por isso, comecei a prestar mais atenção no que os locutores diziam.

Por sete anos, narrei jogos para o meu filho sem ter sido abordada por ninguém no estádio. Talvez as pessoas percebessem, mas nunca falaram nada. Foi essa constatação que me fez questionar quanto o deficiente é invisível aos olhos das pessoas e percebi a importância de falar mais sobre isso. Eu senti a necessidade de mostrar que nem todos podiam proporcionar aquilo para um filho. Seja por insegurança ou por não ter condições financeiras de comprar ingressos. Por que não falar sobre isso e fazer algo a respeito? Meu sonho é criar um projeto para promover essa inclusão. Inclusive, já falei sobre essa ideia com o presidente da CBF, Rogério Caboclo, durante a premiação da Fifa, e ele adorou.

Quando decidi falar sobre a invisibilidade dos deficientes, nunca imaginei que chegaríamos tão longe. Quando meu nome foi chamado durante a cerimônia da Fifa, chegar no palco parecia uma eternidade. Fiquei descrevendo todo o caminho para o Nickollas. Eu não tinha discurso preparado e, na hora de discursar, me deu uma tremedeira tão acelerada que tive de respirar fundo. Deixei o coração falar e as pessoas entenderam bem o recado. Mais do que o próprio troféu, poder subir naquele palco, ver aquela plateia tão importante e ser aplaudida várias vezes por eles. Pensei: ‘poxa vida, consegui fazer eles escutarem que as pessoas com deficiência existem’. Abracei uma causa, uma ideia, e agora me sinto responsável por dar continuidade a essa missão, é meu maior sonho.

Sempre acompanhei a premiação dos melhores jogadores do mundo, mas nunca tinha me atentado para o fato de que existia a categoria de melhor fã. Quando me contaram que estava entre os três finalistas, chorei de alegria. Não acreditava que nossa história tinha chegado tão longe. A experiência toda foi um grande sonho: a Fifa mandou as reservas do voo e hospedagem. Nos receberam no aeroporto e até me ajudaram porque minha mala foi extraviada na viagem. O hotel era maravilhoso, nos deram a programação e vi que iríamos de limusine à cerimônia, passaríamos pelo tapete verde, a zona mista e a festa, tudo detalhado. Quando vi tudo isso, percebi que é um mundo para poucos. Fomos muito bem recebidos também pelos jogadores. Eles chegavam até nós para cumprimentar. Pedimos uma foto para o lateral Marcelo, do Real Madrid, e ele logo nos corrigiu: foi ele quem pediu para tirar uma foto conosco. O Kaká presenteou o Nickollas com uma camisa com o número em braile.

Acho que meu discurso ganhou eco no da Megan Rapinoe. Ela falou sobre as minorias e tivemos o mesmo objetivo de aproveitar aquela plateia, que tem uma influência muito grande na sociedade em geral. Achei o máximo quando ela falou sobre aquilo. Se juntassem as nossas falas, sairia um discurso perfeito. É inadmissível vivermos em um mundo onde os próprios governantes acabam incentivando atitudes ultrapassadas. O mundo precisa mudar, a humanidade precisa tirar esse ódio e ter mais respeito.

Fonte: Veja