Divisão entre a esfera pública e privada criada há séculos e noções de que “quem ganha menos tem que fazer mais” perpetuam sobre mulheres


Uma busca rápida no nosso imaginário (ou nas imagens do Google) comprova uma noção tão antiga e naturalizada que às vezes fica difícil até entender porque é assim: ao digitar “trabalho doméstico”, a maioria esmagadora das imagens traz uma mulher. 

Para entender como as tarefas domésticas se tornaram associadas às mulheres, é preciso ir além daquele modelo de estruturação e organização da família e do lar, que surgiu, literalmente, nos primórdios da civilização: nas sociedades primitivas os homens saíam para caçar e pescar, enquanto as mulheres se encarregavam de preparar os alimentos e cuidar das crianças.

Ao longo da história, outros modelos foram surgindo — no século 18, na Europa, homens, mulheres e crianças das classes menos abastadas dividiam igualmente os afazeres de casa. A partir do século 19, porém, a divisão estrita de esferas — pública, como masculina, e privada, como feminina — passou a ser disseminada nas sociedades industrializadas. 

"A ideia de lar como refúgio do espaço público, da cidade, da competição, 'do mundo', e da casa/lar como um espaço 'feminino' é um modelo muito desenvolvido neste período", comenta Soraia Carolina de Mello, professora do Departamento de História da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e pesquisadora vinculada ao IEG (Instituto de Estudos de Gênero).

Esse padrão perdurou mesmo depois do ingresso da mulher no mercado de trabalho, o que afetou drasticamente a qualidade de vida feminina, criando a segunda e até a terceira jornada. E não é só essa visão ultrapassada, com uma divisão tradicional de espaços, que reforça o padrão: "O desequilíbrio salarial entre homens e mulheres contribui para a sobrecarga feminina. Há a ideia de que ‘quem ganha mais, trabalha mais’, portanto pode relegar a quem ganha menos os afazeres domésticos”, fala a psicóloga Luciene Bandeira, responsável técnica da Psicologia Viva, maior empresa de saúde mental da América Latina, e diretora de Saúde Mental do Grupo Conexa. 

E a construção cultural vai além: “Em casais em que os dois têm o mesmo nível salarial e cultural, os homens têm preferência por tarefas 'menos delicadas', como cuidar do jardim ou limpar a garagem. As construções culturais em torno dos estereótipos de gênero predominam e afetam drasticamente a saúde e a autoestima da mulher", completa. 

Segundo Ana Fava, docente do Bacharelado em Ciências Econômicas do Programa de Pós-Graduação de Economia da UFABC (Universidade Federal do ABC), mesmo quando os trabalhos domésticos são terceirizados, há todo um planejamento que ainda cabe exclusivamente à mulher. "Isso sem contar as decisões envolvendo o orçamento da família e as demandas relacionadas aos filhos. Todo esse cenário constitui uma carga mental que só amplia o trabalho da mulher em casa", pondera.

Para Soraia, da UFSC, o reconhecimento da importância do trabalho doméstico como algo essencial para a vida de todos, homens e mulheres, e o duro caminho em direção a uma divisão realmente justa dele, são questões que devem ser debatidas não só pelos casais dentro de suas casas, mas também na esfera pública, trazendo políticas que vão ajudar nesse caminho. 

"O debate sobre questões de gênero nas escolas, desde a Educação Fundamental, por exemplo, é de suma importância para termos avanços nesse setor. Além disso, toda a comunidade deve agir de modo a redistribuir estas tarefas e reconhecer o seu valor. Políticas públicas de coletivização dessas tarefas podem ser também um importante caminho, como creches, restaurantes populares, lavanderias coletivas. Se o benefício do trabalho doméstico é coletivo, a responsabilização também deve ser — é uma questão básica de justiça social", opina. 

É preciso, ainda, ensinar às crianças que existem outros modelos de masculinidade que não a hegemônica, profundamente machista. "Os homens também devem assumir a responsabilidade sobre suas casas, sua alimentação, sua saúde e suas roupas, assim como sobre sua família, como esperamos das pessoas adultas", diz Soraia, que sustenta que a questão do trabalho doméstico não é um problema só das mulheres. “A busca por soluções não pode ser ‘jogada’ nas costas delas, sobrecarregando-as ainda mais, caso contrário só reproduzimos a lógica de naturalização do doméstico como 'feminino', que é uma questão cultural e historicamente construída e, portanto, passível de transformação", sentencia.

Portal Terra