Desde 1997, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a obesidade uma doença crônica. A condição traz diversos prejuízos para o funcionamento do corpo, é responsável por desencadear doenças sérias, pode levar à morte e provoca estigmas profundos nas pessoas.
Apesar da gravidade do problema e de suas proporções epidêmicas, os tratamentos para obesidade e sobrepeso costumam estar disponíveis apenas para a parcela da população que consegue arcar com o custo.
A sociedade ainda atribui o excesso de peso à preguiça, à falta de força de vontade e à comilança desenfreada. A pessoa obesa habitua estar solitária na hora de encarar a condição, e sofre preconceito até dos profissionais de saúde que deveriam orientá-la para a solução. No caso das pessoas que têm sobrepeso, o assunto é frequentemente ignorado até que se agrave.
“A obesidade não é simplesmente uma consequência inevitável de uma sociedade rica e cada vez mais sedentária, mas uma condição ‘maligna’ da vida moderna que pode ser evitada ou revertida com benefícios substanciais para a saúde de um indivíduo e da sociedade como um todo”, afirma a Federação Internacional de Obesidade, em seu site oficial.
No Sistema Único de Saúde (SUS), há tratamento disponível para as condições que são consequência da obesidade e orientações primárias para os indivíduos que estão acima do peso. Enquanto lamentamos muitas mortes e gastamos bilhões em condições de saúde que são relacionadas ao excesso de peso, não tratamos a causa dos problemas: a comorbidade básica.
Doença que causa outras doenças
A obesidade é definida como a situação em que há excesso de gordura corporal suficiente para causar prejuízos à saúde. O acúmulo leva a alterações metabólicas que atrapalham a regulação da glicose e da insulina. A desregulação causa inflamações permanentes em órgãos do corpo, elevando o risco de doenças crônicas, como pressão alta, diabetes, condições cardíacas e respiratórias e até alguns tipos de câncer.
Um estudo publicado em maio de 2022 na revista científica JAMA, uma das mais importantes do mundo, afirma que a obesidade é, inclusive, o principal fator de risco para o desenvolvimento de Alzheimer, a mais comum das demências. A doença está relacionada a fatores genéticos, mas pesquisas recentes mostram que condições ambientais — como o acúmulo de gordura — também desencadeiam a doença degenerativa.
Outro levantamento, de 2019, feito por cientistas franceses e britânicos, sugeriu que a obesidade é o segundo fator de risco mais importante para o desenvolvimento de câncer, ficando atrás apenas do tabagismo. Uma pesquisa escocesa mostrou que indivíduos com excesso de peso podem, inclusive, ter uma resposta imune inferior às vacinas da Covid-19.
De acordo com um estudo publicado em 2019 por cientistas da Universidade Federal da Universidade de São Paulo (Unifesp) na revista científica Preventing Chronic Disease, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), cerca de 168 mil mortes por ano no Brasil são atribuíveis ao sobrepeso e à obesidade.
Dados do levantamento Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feito pelo Ministério da Saúde, mostram que, em 2021, 26,3% da população brasileira tinha diagnóstico médico de hipertensão; e 9,14%, de diabetes. Segundo informações do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), também do governo, em 2022, cerca de 66% dos brasileiros tinham excesso de peso (que inclui sobrepeso e obesidade).
Um grupo de pesquisadores da Fiocruz calculou o quanto obesidade, hipertensão e diabetes custam ao SUS: são R$ 3,45 bilhões anuais, considerando os gastos com hospitalizações, procedimentos ambulatoriais e medicamentos distribuídos aos pacientes. Para se ter uma ideia, esse montante seria o suficiente para construir 3.450 UBSs (unidades básicas de saúde — a ponta da rede pública onde ocorre as ações preventivas de saúde para a população).
“As três condições — obesidade, hipertensão e diabetes — formam uma tríade. É comum que ocorram juntas em uma mesma pessoa. No geral, são preveníveis e controláveis, não deveriam gerar tantos custos”, afirma o pesquisador Eduardo Nilson, do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA), Fiocruz, um dos autores do trabalho.
Em nova pesquisa, que está sendo preparada para publicação em revistas científicas, os cientistas projetam que gastos por mortes prematuras relacionadas à obesidade chegarão, em 2030, a R$ 4,2 bilhões (custos diretos) e R$ 45 bilhões (custos indiretos).
Tratamento atrasado no SUS
“As pessoas com obesidade sofrem preconceito, são vistas como preguiçosas, escutam que a obesidade é uma escolha. Não é verdade. É uma doença crônica. Muitos acham que o tratamento é simples: comer menos e fazer exercício. Mas não é só isso”, explica o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
No Sistema Único de Saúde, o que se oferece para o paciente obeso é o mínimo: mudança de dieta e estímulo aos exercícios. Para casos de indivíduos com índice de massa corporal (IMC) muito alto, acima dos 35, com comorbidades, a recomendação é a cirurgia bariátrica.
Halpern alerta que muitos pacientes simplesmente precisam de um atendimento mais profundo. Alguns têm compulsão, outros sofreram preconceito ao longo da vida e internalizaram emoções, o que pode piorar o quadro, e possuem um padrão de alimentação pouco funcional ou não têm condições de se exercitar e fazer dieta. “Existe uma falta de conhecimento até entre os médicos. A obesidade tem base biológica e fisiológica, muitos casos precisam de remédio. Não dá para achar que é algo que se resolve só comendo menos e se exercitando”, diz o médico.
Para o presidente da Abeso, o tratamento da obesidade sem cirurgia no SUS é praticamente inexistente. Ele lembra que existem ilhas de excelência em poucos hospitais e universidades, mas o cuidado, na maioria das vezes, é genérico, feito por profissionais de saúde pouco capacitados para lidar com esse tipo de paciente. “É uma questão de educação em saúde e uma crítica à universidade, que ensina muito pouco sobre a obesidade”, explica.
Na rede pública, o indivíduo obeso sofre com a demora para marcar exames e consultas; é difícil conseguir uma reavalição em tempo hábil — no processo de perda de peso, é importante a atenção da equipe multidisciplinar algumas vezes por ano. Além disso, há dieta que muitas vezes não se adequa ao estilo de vida do paciente, e, com tantas dificuldades, as desistências são comuns.
Em tempos de Ozempic e outros remédios para obesidade já tradicionais na rede particular — opções que vêm transformando o tratamento do sobrepeso e da obesidade e aumentando as taxas de sucesso —, não há nenhum tipo de medicamento oferecido pelo SUS com a finalidade de perda de peso.
“A obesidade é a única doença que não é tratada com remédios no SUS. É um absurdo. Das duas, uma: ou não acham que é doença e precisamos convencê-los, ou é porque é uma condição menosprezada, e não tem padrinho. A gente tem o melhor programa mundial de aids, temos programa para transgêneros, fazemos transplante, mas não temos um remédio para obesidade. Precisamos repensar o alocamento de recursos”, alerta o endocrinologista Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
Ainda em abril, especialistas da OMS devem se reunir para debater a inclusão, pela primeira vez, de remédios para combater a obesidade na lista de medicamentos essenciais. Entre os princípios ativos avaliados estará a liraglutida, componente do Saxenda, um produto da farmacêutica Novo Nordisk, que também fabrica o Ozempic.
O rol atualizado, que é usado por países de baixa e média renda como guia para tomada de decisões em saúde pública, deve ser divulgado em setembro.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já aprovou a comercialização de cinco medicamentos contra a obesidade: sibutramina, orlistat, cloridrato de lorcasserina, liraglutida (Saxenda, Xultophy e Victoza) e semaglutida (Wegovy, que é fabricado com a mesma molécula do Ozempic).
Desses, apenas os dois primeiros foram avaliados pela Conitec, o órgão que analisa a inclusão de remédios que serão oferecidos pelo SUS. Nos relatórios, o comitê considerou que as evidências apresentadas não eram suficientes, e os produtos não foram aprovados para compras governamentais.
Bariátrica: chances abaixo de zero
De acordo com um levantamento recente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), a intervenção médica indicada para resolver a obesidade mórbida, estágio mais avançado da doença, chega a menos de 1% às pessoas que precisam dela.
Quando o paciente depende do Sistema Único de Saúde (SUS), as chances de ele conseguir realizar o procedimento cirúrgico são abaixo de zero: entre 0,3% e 0,4% das pessoas com indicação conseguem ir para a sala de cirurgia.
“Faltam médicos e também centros de atendimento adequados. Simplesmente hoje não temos como dar conta da demanda”, lamenta Valezi, o presidente SBCBM.
Segundo dados da entidade médica, hoje o Brasil tem 7,7 mil hospitais, presentes em 5.568 municípios — porém, desses, só 98 fazem cirurgia bariátrica e metabólica. Quatro estados brasileiros (Amazonas, Rondônia, Roraima e Amapá) sequer oferecem o procedimento.
Entre 2017 e 2022, o Brasil realizou 315.720 mil cirurgias bariátricas. Desse total, 252 mil foram pagas por planos de saúde; 46.791, pelo Sistema Único de Saúde (SUS); e 16 mil, de forma particular.
A cirurgia bariátrica é indicada, principalmente, para pacientes com grau de obesidade III – IMC acima de 40. “São pessoas com comorbidades sérias que, muitas vezes, estão acamadas, com problemas cardíacos e respiratórios. A cirurgia é a chance delas para recuperar a vida”, ressalta Valezi.
No Distrito Federal, a fila declarada de espera pelo procedimento é de 250 pessoas. O número, no entanto, representa cerca de 1/4 do total das pessoas que buscam o hospital com a intenção de realizar a cirurgia.
Para a indicação de uma bariátrica, são necessárias consultas com cardiologista, endocrinologista, psicólogo, nutricionista e fisioterapeuta. É comum que o paciente se perca na via-crúcis sem conseguir marcar todas as consultas e os exames obrigatórios.
Halpern, presidente da Abeso, diz que, além de tudo, o paciente que finalmente passa pela cirurgia bariátrica no SUS ainda sofre com a falta de acompanhamento pós-operatório. “Ele vai precisar tomar vitaminas, de acompanhamento multidisciplinar, e há grandes chances de complicação a longo prazo. O paciente fica perdido”, afirma.
Tratamento generalista
Questionado pelo Metrópoles, o Ministério da Saúde mostrou uma abordagem generalista sobre o problema, ao afirmar que oferece tratamento integral e gratuito às pessoas com sobrepeso e obesidade.
“Para além da redução de peso, também são priorizados a melhoria das condições de saúde, a prevenção e o controle de comorbidades associadas à condição. Entre as ações e estratégias disponíveis no SUS, estão o acompanhamento nutricional e alimentar, ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas e estímulo à adoção de hábitos saudáveis, além dos guias alimentares para a população brasileira, entre outras ações”.
Na próxima reportagem, entenda o que a ciência sabe sobre as causas da obesidade e da compulsão alimentar e a relação da doença com as emoções.
Fonte: Metrópoles
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